- Sentada, ainda na cama, enquanto o sol dorme e todos da casa descansam, tenho, enfim, o silêncio e a paz para escutar. Chega até ser estranho não ser interrompida, entrecortada ou solicitada. Já reparou como o nosso dia é repleto de ruídos?! Notícias ruins de uma pandemia que se alastra, transformando cada vez mais números em pessoas conhecidas e amadas. Já reparou como não têm fim as demandas?! Que além de ininterruptas, desconsideram todo e qualquer horário… Já se deu conta como as crises econômica, sanitária, política e de segurança, há muito, deixaram de ser apenas notícias e passaram a fazer parte do nosso quotidiano? Quem aí está se sentindo saudável, equilibrado, e pleno nos últimos tempos?! Desculpe-me a sinceridade de lhe chamar de insano, caso assim se considere.
Quem já ouviu falar que isto é o “novo normal”? Que o que nos resta é a resiliência, o silêncio e, se tivermos sorte, a sobrevivência?
Só quem está sobrevivendo à pandemia, sabe que pode não haver muito espaço para se viver dentro disso. Seja com filhos, cônjuge, família ou até mesmo sozinho, presos dentro de casa, ou arriscando-nos ao enfrentar todo o tipo de leão que assombra as ruas. Quem está sobrevivendo ao medo de trazê-lo, inconscientemente, para dentro de casa, para dentro de quem amamos? Só quem vive isso sabe do que estou falando…
Quem aí está com pais ou avós dentro de sua casa, por já serem dependentes e demandarem cuidados? Quem está se sentindo uma ilha, isolado de todos, mesmo morando na mesma cidade, na mesma rua, no mesmo prédio ou até mesmo na mesma casa?
Quem está com rede de apoio escassa ou ausente, fazendo trabalho em home office, ou na zona de guerra? (o que pode significar apenas uma ida ao mercado, farmácia ou padaria.) Quem aí sabe como pequenas coisas, como gritos, choros, visitas ou até mesmo a energia das crianças, dos cachorros, ou das festas na casa de vizinhos inconsequentes podem tomar aberrantes proporções?
Quem aí está cansado?
Quem já pensou em mandar o vírus ou a vida à merda?! Que já deu por certo de que, em última análise, a sorte já está lançada?! Quem cogitou em largar o trabalho, a família, as contas, as responsabilidades e acabou desistindo, sabendo que, o que resolveria mesmo, seria mandarmo-nos à merda, se fosse possível ir desacompanhado de nós mesmos?
Sentada na cama, ainda no escuro, penso mesmo quando e quem foi o infeliz que embutiu a ideia de que a mãe tem que dar conta de tudo. Que é ousadia, ingratidão ou até mesmo pecado reclamar ou se expressar! Quem foi o desgraçado que pregou que mãe é quem deve, por conexão, por dom, por nascença ou por simples necessidade dar conta da casa, dos filhos, da profissão e, não raras vezes, do marido, dos pais, do gato, do cachorro, do periquito ou de quem mais conseguir subir neste barco?!
Procuro, em minha mente, qual foi a semente plantada, e que, até hoje, dita que a boa mãe é a que passa uma vida dedicada, eficientemente sendo uma mártir de si, enquanto vive em função e para o outro (sejam filhos, pais, avós, marido, cachorro ou simplesmente uma casa)
Lembro-me da minha família patriarcal, com minhas bisavós submissas, à margem da educação profissionalizante, que passaram da guarda de seus pais para a de seus maridos. Penso que nem seu próprio corpo lhe pertencia. Que o banho era com camisolas, com vergonha de se limpar aquilo que nem sequer podia ser despido. Lembro-me de que filhos não eram uma escolha, sendo apenas uma simples e pura consequência, com cruéis desfechos quando a natureza negava. Lembro-me de que não tinham outro modo de sobrevivência senão a de se subjugar, calar, tendo, com uma certa doçura, ou com necessário isolamento embutido no status que escondia defesas e buscava algum espaço dentro de si, ou quiçá dentro de casa.
Lembro-me de que minha bisavó morreu com o sonho de ter sido dentista, de que minha avó conseguiu camuflar e calar seu sonho de cursar arquitetura no curso de pedagogia, o que também nunca lhe foi permitido exercer. Lembro-me de como até mesmo minha mãe abandonou sua vida e sua profissão para cuidar dos filhos- o que não teria nada de errado se não trouxe, especialmente hoje, em época de pandemia e de ninho vazio, tanto sofrimento. Lembro-me de como minha outra avó foi crucificada por ser professora e por ter se dedicado tantas horas dos seus dias para o trabalho, para o mestrado, em detrimento de suas pobres e abandonadas filhas.
Lembro-me de como, independentemente do que ocorre, como é fácil achar dedos que apontam, rotulam, julgam, condenando-nos com mesma facilidade como nós mesmas, tantas vezes, o fazemos.
Amanhecendo um novo dia, levanto-me às pressas. Se não eu, quem cuidará de mim? Se não eu, quem fará no meu lugar? Se não eu, quem irá permitir? Se não hoje, quando?
Suspiro aliviada sabendo de que sou dona do meu corpo, da minha vida, da minha profissão e da minha maternagem. De que não sou e tão pouco quero ser uma máquina, ou um reboque eficiente. De que não dou, e nem devo dar conta, de tudo, sozinha. Suspiro fundo, dado como certo de que se quero ensinar meus filhos o que é viver preciso me ser. Fica claro que para não condená-los a passar uma vida sobrevivendo é preciso conhecer o que é amor, respeito, empatia, e até mesmo ódio, frustração, erro, fracasso e reparação.
Apenas nos permitindo experienciar a vida -ao invés de nos defender ou nos esconder dela, poderemos, enfim, viver.
“Se eu não for por mim, quem será? Mas se eu for só por mim, o que sou eu? E se não agora, quando?”
Me acompanha, juntos,
na arte do cuidar.
Dra. Ana Fonseca
CRM-SP 163450
Seu texto é profundo, bem escrito e reflete com precisão o mundo da mulher desde sempre.
Apesar de ser uma triste constatação é um privilégio podermos arcar com todas essas responsabilidades e concluirmos que por essa razão vale a pena viver. Parabéns!